A gula: o “pecado” socialmente aceito

Gula: o pecado aceito socialmente

O termo “gula”, vem do latim “gul” que significa parte da boca na qual se engole. Goela, gula, gulodice, garganta são todos termos derivados, conforme menciona este artigo que nos auxilia neste momento. Portanto, o “pecado” da gula no faz pensar em comer, deglutir, engolir, beber em excesso e isso estaria muito facilmente relacionado ao circuito da pulsão oral – fixação em uma dinâmica de satisfação que envolveria, a priori, as primeiras marcas e lembranças de satisfação alimentar, de aconchego e acolhimento. Marcas estas muito relevantes na história de cada sujeito e que acabariam moldando um modo de funcionamento em torno do comer – em uma concepção tão ampla quanto possível. Comer, beber, …  e fumar e ingerir substâncias em geral seriam traços indicativos dessa fixação oral, portanto. Mas vejamos: a inveja, a luxúria e a ira, por exemplo, são condutas que não raro subjugam o outro e, por isso, fica fácil entender o seu caráter socialmente deletério. E a gula? A quem prejudicaria se não a apenas o próprio sujeito? Por que seria, então, um “pecado”? Neste outro artigo, por exemplo, fica exposto que em algumas culturas, a gula é associada ao sucesso pessoal – muito correlato, portanto, à cobiça, que também não é considerada um pecado capital. O que fica claro no excesso da gula é a constatação da falta de limite, da sofreguidão com que o sujeito se conduz à comida e à bebida. Em alguns outros artigos sustenta-se a ideia de pecado a partir da impressão de um desrespeito aos limites do próprio corpo e, como o corpo seria uma “criação divina”, um desrespeito ao divino, por correlação.

Mas, já que falamos de um modo de satisfação, não há como escapar da associação da gula com a cobiça, já mencionada em nosso artigo sobre a avareza. O guloso não parece se satisfazer facilmente e também não com qualquer coisa: há uma fantasia de comer algo específico que, se disponível, é deglutido em quantidades que vão muito além da satisfação orgânica – uma insatisfação similar à da cobiça. Aí podemos entrever uma comum relação imediata do guloso com a obesidade e, com isso, mais conflitos possíveis a serem considerados: afinal, em tempos de imagem e ideal supervalorizados, por um lado, meu modo de satisfação me leva a comer quase compulsivamente e, por outro, quero ter a imagem que os ídolos midiáticos sustentam com grande investimento de tempo, disciplina e, muitas vezes, medicamentos e suplementos no mínimo questionáveis. Com o conflito desejo/ideal estabelecido, não raro chega-se, portanto, à bulimia, por exemplo, que se apresentaria como uma decorrência da própria gula, como nos detalha melhor este outro artigo, bastante interessante. Afinal, com a êmese provocada, o sujeito “dá conta” do conflito: continua comendo desmedidamente e evita o efeito orgânico da ingestão efetiva dos alimentos. E não estamos falando de nenhum fenômeno moderno já que é fato conhecido que nobres europeus utilizavam-se de penas de aves para estimulação de vômitos para que pudessem continuar a comer durante as celebrações. Temos, portanto, sim, gulosos obesos e esquálidos, e estes últimos nem sempre percebidos como tal.

O incômodo que advém da gula muitas vezes demora muito a se manifestar, no próprio sujeito ou em que o cerca, porque estaria ligado principalmente a problemas orgânicos decorrentes da obesidade ou da diabetes, por exemplo. Outros aspectos da gula não tão imediatamente perceptíveis, considerando um viés de fixação oral, como as adicções, a bulimia ou a cobiça extremada, produzem outras “formas de sofrimento” que acabam afetando quem está próximo, talvez mais do que ao próprio sujeito. Mas não podemos perder de vista que por trás desse modo de funcionamento está, em geral, a evitação da angústia, da falta, ou a ilusão da compleição possível através da assimilação de algo que está fora e que “taparia” ilusoriamente a falta fundamental. E é nesse ponto que lembramos que a ressimbolização pela via da palavra em uma terapia psicanalítica é um caminho a ser considerado.

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