Dente Canino – a força do discurso do Outro

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O filme de Yorgos Lanthimos (2009) nos desconcerta, mas certamente nos faz pensar sobre poder, verdade e a força das palavras.

Em uma sinopse despretensiosa de algumas linhas, certamente repleta de spoilers (já aviso), trata-se de uma família em que o pai mantém sua família – esposa e mais 3 filhos adolescentes (2 moças e um rapaz) – em uma prisão simbólica, estabelecida a partir da construção de um mundo limitado por suas próprias crenças fantasiosas que ele se empenha para tornar crível, coerente e pleno de sentido. Não há televisão ou telefone, os produtos consumidos têm suas marcas retiradas das embalagens, a rotina é ditada e dirigida para um desenvolvimento competitivo entre os filhos, a mãe traduz para os filhos eventuais novas palavras e expressões ao seu bel prazer, procurando alijá-los de qualquer exercício possível de alteridade. Os limites da propriedade, da casa da família, são os limites do mundo.

E assim, a autoridade do pai mantém-se absoluta, inquestionável.

Dizia ele – e aqui estrago um pouco do filme – que os jovens atingiriam a maturidade com a queda do dente canino. Mas só seriam totalmente independentes com o nascimento de um novo dente canino, algo como uma absurda 3ª dentição ( ! ). E assim a submissão ao pai absoluto era sustentada. Até que… Não, não vou prosseguir com o spoiler.

Mas não há como não reconhecer o poder concreto das palavras dos pais nesta alegoria genial. Afinal o Papai Noel, o Coelhinho da Páscoa, deuses, fadas, monstros, heróis, bandidos, o bem, o mal e tantos outros mitos são criados e fantasiados a partir da credibilidade que o discurso dos pais detém para a criança. O que é dito, é verdade e é lei, a priori. Mesmo que haja rebeldia, transgressão, resistência, ainda há o reconhecimento de que o “certo”, a “verdade” está posta e que a oposição a isso é uma tentativa de fazer-se existir apesar da regra que, reforço, já está colocada como algo que molda a mitologia deste sujeitinho – forma a sua rede simbólica básica ou o Outro lacaniano, se me permitem avançar um pouco. Ou seja, a obra do diretor grego nos faz pensar no quanto estamos sujeitos ao poder da parentalidade, o que também aparece em outro filme seu, mais famoso e atual: “Pobres Criaturas (2023)”, vencedor de Oscar, inclusive.

Mas outro ponto interessante que o filme nos traz é a estranha conivência da esposa com o marido déspota. Um arranjo perverso em que ela não só compartilha dos delírios centralizadores, autoritários e violentos do marido como também se submete a muitos deles. Mais uma vez: em quantas famílias vemos arranjos similares em que um cônjuge acaba se submetendo a condutas até criminosas a bem do ideal do casamento ou do temor da solidão ou do abandono. Mais uma vez: reféns de uma rede simbólica que só lhes permite manter-se submetidos a um poder absoluto que às vezes leva a irrelevar ou subestimar condutas e dinâmicas perniciosas na família. Basta pensar nas histórias de mulheres que sofrem abuso reiterado, assistem a abusos com seus filhos e, ainda assim, tentam manter-se “fiéis” ao companheiro.

O filme está disponível em algumas plataformas digitais e dá pra assistir ao trailer aqui.

Deem uma olhada e depois comentem.

Um comentário

  1. Debora Behar

    Que bacana Glauco! Adorei o texto e a indicação! Vou assistir!

  2. Fausto dos Santos

    Obrigado pela reflexão, Glauco. Vi este filme uns anos atrás. É impressionante mesmo. Abraços!

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