Luxúria: entre a culpa e o excesso

Luxúria: entre a culpa e o excesso

Eis o “pecado” cuja discussão entre nós da Laços Psicanálise foi a mais complicada até o momento, pois aponta para uma multiplicidade de direções inconclusivas, a princípio, para que se caracterize o seu excesso. Afinal, a que servia, na época de apresentação dos Sete Pecados Capitais no séc. XIII, condenar o vício da luxúria? Neste artigo, com reflexão psicanalítica sobre o tema, podemos começar a pensar no caráter do excesso e em diversas interpretações interessantes como a de Rubem Alves, por exemplo, que nos diz que a luxúria, antes de ser genital, está associada ao olhar. Mas podemos avançar um pouco dizendo que o artigo nos faz ver também a questão dual que existe associada à luxúria: tanto a busca desenfreada pela satisfação sexual quanto, também, em oposição direta, a intensa moção de repressão sexual. São os dois lados da mesma moeda da luxúria: culpa e excesso – em uma citação didática, e que nem sempre é uma percepção acessível fora de um contexto psicanalítico.

Mas achamos que um viés de partida pode ser pelo tabu da sexualidade sustentado mais firmemente pela Igreja Católica que tem em sua doutrina e mística ideias que falam de uma grande dificuldade para trabalhar com a heteridade – ou até mesmo com a alteridade. Basta pensar que a Imaculada Conceição (= concepção sem mancha) fala do nascimento de uma pessoa cuja origem não foi sexual. Ou o predicativo do celibato de seu clero, masculino e feminino. Dentro dessas prerrogativas, mais “certo” está quem está afastado da realidade sexual. Aí, excesso em termos de vida sexual passa a ser qualquer relação sexual que não a ligada essencialmente a uma intenção de reprodução – como ainda se vê em algumas doutrinas mais fundamentalistas. E assim, a intenção de se culpabilizar uma conduta sexual “não ideal” foi e é vigente, mas, convenhamos, com praticamente nenhuma eficácia. Haja vista que por volta de 100 anos depois de apresentada a lista de pecados capitais, é lançado Il Decamerone, por Giovanni Boccaccio (1353), com 100 contos de uma picardia digna de tempos atuais, refletindo hábitos da época que desconsideravam, na prática, o caráter pecaminoso da união carnal.

Portanto, caracterizar ainda hoje o que é excesso na vida sexual das pessoas é bastante complexo, mas podemos levantar, apenas para abrir uma breve reflexão, pelo menos duas frentes em que isso é pouco dubitável: os assédios e a(s) monomania(s). No mundo dos assediadores, vemos um viés de violência velada ou explícita que leva o assediador a realizar-se sexualmente com o corpo de suas vítimas, sob uma aura fantasiosa de ser – ou de ter que ser – desejado, geralmente a partir de algum tipo de ameaça física, psíquica ou moral. Podemos pensar, como em outros artigos desta série, em um vetor narcísico, que coloca o assediador como centro de uma relação em que não é capaz de trabalhar com a frustração de não ser desejado e acaba forçando diversas situações para evitar esta frustração básica, com o agravante de que, mesmo tendo sido comprovada a violência por ele praticada, não dispõe de meios subjetivos para reconhecer os terríveis efeitos de sua conduta no outro. E nos casos das monomanias, onde um exemplo interessante podem ser os volumes do filme Ninfomaníca (Lars Von Trier – 2013), temos uma dependência “cristalizada” do sujeito na posição de ser desejado, e fora dessa posição sua existência beira constantemente a angústia. Portanto, pauta sua vida em encontros sexuais “coisificantes”, em que o outro não existe, de fato, como uma pessoa, mas como mero veículo para atualização constante de uma fantasia de falta intensa e perene a ser ilusoriamente obturada pela via do sexo, e pela via de uma intensa repressão, intimamente associada a uma culpa excruciante, como já mencionamos.

De qualquer forma, estamos falando, desta vez, em um “pecado” que, diferente dos outros analisados até o momento, tende ao exagero moral em sua concepção original, é causador de diversos aspectos de autocondenações deslocadas na história da cultura europeia durante séculos, mas pode, sim, por outro lado, ser fundo de reflexão para que se contrastem excessos, de fato, na medida em que constituam modos de satisfação alienantes (monomanias) ou nocivos (assediadores), por exemplo. E, caso gerem questões essenciais para o sujeito, a psicanálise aí está para ouvi-lo e possibilitar eventualmente novas significações e novos desenlaces para a vida deste sujeito.

Um comentário

  1. Rafael

    Excelente ter acesso a um pouquinho do conhecimento da nobre ciência psicanalítica. Obrigado demais pelo privilégio 🙂

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